É tempo, finalmente, de escrever estas palavras.
Gaza está sempre a contemplar a sua destruição. Rapazes tomam banho na baía, apesar do esgoto e de tudo o que a polui. Carros e motas estacionam frente à água, vão, vêm. Há pares entre as pedras, duas barracas de café. E lá mesmo na pontinha, antes do mar, uma família estendeu um pano sobre os destroços, trouxe refrigerantes, café. Estão ali com quem chegou ao fim de tudo.1
Gaza, há meses que não penso noutra coisa senão em ti: na tua costa mediterrânica, azul turquesa, onde pescadores são alvejados só porque sim; na paisagem apocalíptica, casas e tendas bombardeadas com igual precisão, ferro e cimento moídos cada vez mais, em cima dos teus mortos; nas tuas pessoas, encurraladas num espaço cada vez mais exíguo e perigoso, uma faixa transformada em campo de concentração.
Não há sítio do mundo que eu mais queira conhecer: Rafah, Khan Younis, Cidade de Gaza, Jabalia - sítios de que nunca tinha ouvido falar até a tua gente servir de carne para canhão da máquina opressora e genocida que te tem refém. Não há pessoas das quais me sinta mais próxima, senão da tua gente: resiliente, gentil, digna, corajosa - assim vejo a população de Gaza. Estas pessoas morrem mil mortes todos os dias e, ainda assim, arranjam um momento para nos mostrar do que é feita a coragem e resistência, defendem a sua terra, mostram a justição da sua luta.
Shreef, Mohammed, Tala, Omar, Mahmoud, Haitham, Tamer, Abod, Ahmed, Abdullah, Ali e Azooz; Rafif, Maryam, Masa, Kiraz, Rana; Lulu, Lucy, Biso, Artemisia - eu leio-vos e mantenho-vos nas minhas preces (apesar de não ser uma pessoa religiosa). Eu penso em vocês quando acordo e fico preocupada quando a internet é cortada pela ocupação. Vocês são símbolos da esperança de que todo este mal um dia terá fim e os primeiros a relatarem o vosso sofrimento em tempo real e sem possibilidade de fuga. Cruelty is the point.

Gaza abalou todas as minhas convicções: o direito internacional não existe, as instituições são fantoches, os governos seguem a mesma cartilha ditada por uma entidade que trucida tudo à sua frente. A dualidade Bem e Mal está profundamente desequilibrada, a empatia e humanidade deixaram de existir. Gaza é um teste, tão profundo quanto existencial, um espelho assustador, um poço onde a racionalidade e a ordem foram morrer.
Perdi a conta às imagens aterrorizadoras que vi nestes últimos meses: um bebé de meses com uma perna amputada na anca, um miúdo que trazia num saco os restos do seu irmão, o olhar absolutamente desolador de uma menina pouco antes de morrer, os pais que foram tentar conseguir comida para os filhos e voltaram numa mortalha, pessoas queimadas vivas em tendas e em abrigos - tanta pessoas mortas e cheias de fome, quando há camiões cheios de comida do outro lado do checkpoint. A crueldade é muito, muito difícil de aceitar.
Gaza, eu vejo a tua gente encurralada num espaço exíguo, sem comida, sem água, sem electricidade; eu vejo os teus bebés a definharem porque não deixam leite em pó atravessar a fronteira; eu vejo a indiferença dos líderes europeus e americanos; eu vejo os jogos de poder nos bastidores, as mentiras e os esquemas, as traições e penso: como consegues sobreviver num cenário tão catastrófico?
E então eu lembro-me das tuas pessoas, acossadas há mais de setenta anos; famílias enormes debaixo da mesma sombra; a beleza e delicadeza das tuas palavras; o teu desejo de continuar a existir, mesmo quando te dizem que isso é impossível; as toalhas estendidas à frente das ruínas. E então sei que és imortal e intemporal, Gaza: nunca vais deixar de existir, vais sobreviver a todo o Mal nesta estreita faixa de terra e na nossa imaginação. Eles nunca conseguirão apagar-te, Gaza, porque todos nós nos lembramos, todos nós falaremos de ti mesmo se te conseguirem calar.
Excerto do lindíssimo Gaza está em toda a parte, da Alexandra Lucas Coelho.