Vizinhos
Às vezes cheirava a carapaus fritos, noutras sentíamos o cheiro avinagrado das iscas - tudo ao som da Praça d'Alegria
Se vocês cresceram, como eu, nos anos 80/90, é provável que tenham a mesma reacção que eu tenho quando ouço a palavra vizinhos: cantar o genérico da série australiana.
🎵Neighbours
everybody needs good neighbours
With a little understanding
you can find the perfect blend🎵
Vivi em alguns bairros de Lisboa mas não me lembro da maioria dos meus vizinhos - aliás, em alguns dos prédios nem sequer os conhecia. Mas no nosso último apartamento, o único verdadeiramente nosso há quase 20 anos, tivemos quase uma família inteira como vizinhos: o casal de idosos que vivia ao nosso lado, a irmã da senhora que vivia no rés-do-chão abaixo de nós, o filho quarentão do casal que vivia no último andar, nas águas furtadas. A televisão estava sempre ligada em altos berros, ouvíamos todas as brigas e discussões, o pai abria a porta de casa para gritar nas escadas para o filho ir comer, sabíamos sempre o que era o almoço e o jantar só pelo cheiro. Sinto que eram vizinhos lisboetas como não encontramos mais.
Quando chegámos àquele prédio, tentámos desde logo criar uma relação com eles, para que eles pudessem contar connosco se precisassem e para nós sabermos que também tínhamos ali alguém com quem contar (um dia deixei a chave em casa e não tive outra alternativa senão sair pela janela da sala deles, que dava para as traseiras do prédio, e içar-me - a muito custo - para a nossa janela). Convivíamos cordialmente, embora o vizinho achasse que fechávamos a porta do prédio com demasiada força.
Num dos primeiros Natais que passámos lá, levei um saco de rebuçados de ovos feitos pela minha avó como presente. Era uma gentileza para agradecer a boa convivência e o facto deles nos tratarem como se fossemos da família. Vi na cara da minha vizinha uma enorme surpresa e um certo desespero: eu não tenho nada para lhe dar! A minha resposta era óbvia: não tem de dar nada, queríamos só oferecer-lhes uns docinhos. Fechámos as portas e voltámos à nossa vida.
No final desse dia, voltava eu do trabalho e a vizinha apanhou-me à porta. Empunhava um saco do Pingo Doce e estendeu-mo: tinha estas coisas aqui em casa, fique com elas. É de boa vontade! E eu claro que disse que não era preciso mas obrigada e entrei em casa. Quando abri o saco, vi várias peças que pareciam de cristal (ou de vidro, não sei dizer a diferença): umas taças, uma caixa e um cisne, nunca me esquecerei do cisne. Esta pessoa tinha sentido a necessidade de devolver a gentileza e acabou por oferecer-me coisas que provavelmente tinham valor (pelo menos sentimental) para ela.
Naquele momento, não dei o valor que o gesto merecia. Pensei que era uma oferta bizarra, que as peças não tinham utilidade e não compreendia a motivação. Mas hoje sei que às vezes as pessoas fazem coisas apenas porque têm bom coração e porque sentem um impulso de fazer o bem e isso vem em muitas formas e muitos momentos diferentes. Pontualmente, é possível saber pouco sobre uma pessoa e mesmo assim querer-lhe bem. Senti isso em Lisboa e aqui em Portalegre, como quando um vizinho me veio chamar para colher tangerinas da sua árvore: é para dar aos seus meninos!
Este texto foi escrito para responder a um desafio que partilho com algumas pessoas que admiro nesta internet, em que escrevemos sobre o mesmo tema todas as semanas. Esta semana escrevemos sobre aquelas pessoas que às vezes estavam a espreitar pelo buraquinho da porta:
a Carla n’A curva - Vizinhos
a Rita no Boas Intenções - Vizinhos
a Maria João n’A Gata Christie - Vizinhos
a Calita no Panados e arroz de tomate - Vizinhos
a Mariana no Gralha Dixit - Vizinhos
a Joana n’O blog azul turquesa - Vizinhos
a Helena nos Dois Dedos de Conversa -