Até o diabo se ria
Uma restrospectiva sobre aqueles meses (anos?) em que se comprou demasiado papel higiénico, fermento de padeiro e garrafas de vinho tinto
No dia 13 de Março de 2020, depois de um par de semanas em que as notícias que vinham primeiro da China e depois de Itália não eram nada animadoras, o governo luxemburgês tomou, como tantos outros, a difícil decisão de manter a população em isolamento “voluntário”. Lembro-me de ir ao supermercado no dia antes, quando já se ouviam esses boatos, e ver as pessoas a conversar nas caixas com muita apreensão, a tentar decidir o que seriam as compras indispensáveis, uma espécie de aura feita de medo e deconhecimento profundo sobre aquilo que estava a acontecer. Rio-me agora porque no dia antes a minha antiga chefe me dizia que teria de continuar a ir ao escritório - parecia desligada da gravidade da situação e tudo o que lhe interessava era poder continuar a micro-gerir a equipa.
Nesse ano, passei a consumir informação como nunca. Via religiosamente todos os noticiários, estava viciada em saber como estava a progredir a doença. Ficou-me na memória um vídeo de um casal chinês colocado em alguma rede social, em que ela se tinha fechado no quarto dias a fio, com a porta apenas a abrir durante segundos para que o marido deixasse ou levasse um tabuleiro de comida. Nunca vou esquecer as imagens constantes dos hospitais italianos, em que profissionais eram levados ao desespero com o número de doentes a aumentar exponencialmente a cada dia que passava, ao mesmo tempo que se tentava perceber como tratar aquelas pessoas que rapidamente sucumbiam à falta de ar. Também de Itália vieram inicialmente algumas das imagens que mais me tocaram durante aquele ano: o cortejo de viaturas militares que levavam os caixões dos mortos a enterrar, por estradas vazias e cidades submersas no silêncio. Tocaram-me as imagens vinda da China em que havia corpos espalhados pela rua, sem que fossem recolhidos por medo de contágio ou os camiões frigoríficos estacionados em Brooklyn porque as morgues simplesmente já não tinham espaço para os mortos.
Drones filmavam os Campos Elísios, a Tower Bridge, a praça de Cibeles, os santuários na China completamente vazios. E estupidamente essas imagens fizeram-me também chorar porque era impensável para mim que o mundo pudesse simplesmente entrar em pausa, sem sinais de vida, sem um único som. A nossa rua, já de si pouco frequentada, passou a deserta, os aviões deixaram de passar por cima do bairro, as filas agigantavam-se à porta dos supermercados. Dois dos miúdos tinham aulas online e sabe dEUS o difícil que foi mantê-los focados, motivados, empenhados durante aqueles (que pareceram) longos meses.
E depois surgiu aquela ideia peregrina de que todos íamos sair melhores pessoas duma situação assim - pff, até o diabo se ria. Parece que não se aprendeu nada nas relações humanas, não nos tornámos mais compreensivos nem passámos a demonstrar mais empatia pelo outro, muitos não compreenderam a importância nem a dimensão do sacrifício de tantos e sinto que esse momento foi basilar para o começo da disseminação generalizada de fake news: os que iam morrer por tomar a vacina; os que, tomando-a, iriam ter microchips implantados na corrente sanguínea; a insanidade de pensar que tudo não passava de uma conspiração mundial para fazer reset à ordem mundial. A certa altura, numa manifestação contra as vacinas (um conceito que não consigo compreender) no Luxemburgo, as pessoas tiveram que ser dispersadas com canhões de água e li quem achasse que essa água continha a vacina e era uma forma de inocular aquele gente toda. O diabo não só se ria, gargalhava e a boa voz!
Esta semana li um tweet de alguém que dizia que não acreditava que já tinham passado cinco anos e que também não acreditava que ainda só se tinham passado cinco anos - parece que a pandemia interrompeu o continuum espaço-temporal, foi uma espécie de glitch na nossa vida. Numa posição que reconheço de extremo privilégio, eu vivi aquele momento da história como uma oportunidade de parar, repôr algum equilíbrio entre vida pessoal e profissional, experimentar coisas para a quais não tinha tempo antes. Também fiz pão, o grande cliché a sair de semanas seguidas sem ver outras pessoas que não os meus filhos e marido.
Este texto foi escrito para responder a um desafio que partilho com algumas pessoas que admiro nesta internet (obrigada, Carla! Que convite feliz!), em que escrevemos sobre o mesmo tema todas as semanas. Esta semana escrevemos sobre risadas diabólicas:
a Carla n’A curva - Até o diabo se ria
a Rita no Boas Intenções - Até o diabo se ria
a Maria João n’A Gata Christie - Até o diabo se ria
a Calita no Panados e arroz de tomate - Até o diabo se ria
a Mariana no Gralha Dixit - Até o diabo se ria
a Joana n’O blog azul turquesa - Até o diabo se ria
a Helena nos Dois Dedos de Conversa - Até o diabo se ria
Oh, a Calita! 🥰 Tinha-lhe perdido o rasto, acho que para aí desde a pandemia (curiosa ligação com o teu texto) que não a lia. Que boa lembrança, vou já recuperar o tempo perdido!